
Bem-vindo ao Funcionário do Mês, nova seção do Departamento de Artimanhas. Criei ela para destrinchar e analisar os mais ardilosos, ensaboados e robustos golpistas dos nossos tempos modernos. O primeiro é o já icônico político George Santos, e esse título da newsletter foi surrupiado de um tuíte da querida Marina Consiglio ao falar dele.
"A maioria de nós nunca viu nada parecido com isso. Algo tão extenso, tão descarado e tão ousado.” — Glenn F. Ivey, congressista democrata e membro do Comitê de Ética da Câmara dos EUA
Essa é a história de um sonho.
E tal qual um sonho em que você não sabe como a cena absurda começou, eu não sei dizer ao certo em que momento o político americano-brasileiro George Santos entrou na minha mente. Só sei dizer que depois que se alojou – seja na versão congressista mentiroso, seja na versão drag chamada Kitara Ravache – ele nunca mais foi embora.
Tentei mapear minha cabeça muitas vezes, e lembrei de alguma chamada na linha “primeiro republicano gay eleito nos EUA é filho de brasileiros”. Na época eu não dei muita bola porque parecia uma história muito besta, uma papagaiada americana dessas que a gente lê todo dia. Eu estava errado, e é importante assumir nossos erros.
Mas quem é George Santos? Quer um resumo? Não? Eu te conto mesmo assim. Vem comigo pra dentro desse sonho.
Nascido nos EUA e filho de brasileiros, George Anthony Devolder Santos surgiu para a política em 2020, quando disputou o cargo de deputado em um distrito de Nova York. Ele fez o ensino médio na escola Horace Mann, no Bronx, e se formou em economia e finanças na Baruch College, onde jogava no time de vôlei e teve duas lesões graves nos joelhos. Depois disso, trabalhou em bancos famosos de Wall Street, como Citigroup e Goldman Sachs, até seguir a carreira política. Sua mãe, que era executiva em uma grande empresa, estava na torre sul do World Trade Center no dia 11 de setembro de 2001. Sobreviveu ao ataque, mas morreu em decorrência da fumaça tóxica que se espalhou por Manhattan. Seus avós eram judeus ucranianos e sobreviveram ao Holocausto. Ele criou e coordenou uma ONG focada em resgate e cuidado de animais que garantiu a vida de mais de 2.800 cachorros nos últimos anos. Surfando a onda do trumpismo, decidiu entrar na política porque recebeu grandes doações de influentes e fervorosos republicanos.
É uma história de luta, de crescimento, de caridade, de sobrevivência. O problema é que do parágrafo acima, só a primeira frase é verdadeira. Todo o resto da bela história de George Santos foi inventada por ele mesmo. (Talvez a última seja verdade também, mas carece de fontes.)
Quando foi eleito em novembro de 2022 como “o primeiro republicano gay dos EUA” em um distrito de Nova York que sempre foi muito democrata, provavelmente nosso Jorginho esqueceu que seria motivo de intenso escrutínio. Um mês depois das eleições, o New York Times começou uma investigação e, meus amigos, cada enxadada era uma minhoca fictícia diferente. Foi até fácil demais, e virou um prato cheio pra toda imprensa. Eu não vou listar todas as mentiras (tem bem mais do que essa falsa biografia acima), mas acredito que três merecem destaque para entender profundamente essa mente insana:
1. A triste história da mãe de George Santos no 11 de Setembro
Essa mentiraiada começou no meio de 2021, em uma discussão besta de Twitter, que resultou em um comentário nervoso respondendo alguém:
Meses depois, George contou mais detalhadamente em um podcast que a mãe dele trabalhava em uma empresa muito chique no World Trade Center, uma das primeiras mulheres executivas de lá, e que ela foi uma das pessoas que conseguiu escapar da torre sul antes de o segundo avião bater.
O problema: a niteroiense Fatima Alzira Caruso Horta Devolder, a mãe, não estava nos EUA na época dos ataques e nunca foi uma executiva de sucesso em nenhum dos prédios. Ela trabalhava como empregada doméstica e cozinheira para uma família americana e morreu em 2016 em decorrência de um câncer. A coisa é tão esquisita que até o obituário dela desapareceu depois que a história toda pipocou.
O tuíte do George está no ar até hoje, e essa é uma das mentiras que ele nunca admitiu, mas acho que ele jamais fará isso porque se tem um negócio que causa ojeriza no povo americano é gente que usa o 11 de Setembro pra ganhar afago. Uma coisa é fingir ser a Luisa Mell gringa, outra coisa é mexer com o trauma coletivo.
2. ‘Délio’ e o cheque sem fundo em Niterói
Em um certo dia de 2008, na cidade de Niterói, um rapaz entrou numa loja de sapatos, se apresentou como Délio, experimentou de tudo e gastou 3.700 reais em vários pares. Depois, deduzo, ele fez a mais capciosa das perguntas para Carlos, o vendedor: “Você aceita cheque de terceiro?”. Ele acabou aceitando, e o cheque era sem fundo.
Dias depois, um outro homem apareceu na loja para trocar um dos sapatos comprados com o cheque sem fundo. Pior: não era uma pegadinha. O comerciante ficou perplexo, questionou o cidadão, e descobriu que ele ganhou o sapato de presente de um amigo chamado Anthony. (Situação chata: ganhou um presente roubado e ainda não gostou do que recebeu.)
Carlos foi atrás de Délio-Anthony, encontrou-o no finado Orkut e mandou uma mensagem. Délio-Anthony, que a essa altura você certamente já deduziu que é George Santos, trocou scraps e depoimentos com o vendedor, assumiu que deu o golpe e disse que pagaria em parcelas o que devia. Nunca pagou nem a primeira.
O vendedor não se deu por vencido. Entrou na justiça e finalmente, em 2010, George Santos foi indiciado e confessou o crime para a Polícia Civil. O problema é que a justiça é meio devagar, e quando ele foi condenado, em 2011, nenhum oficial de justiça conseguia encontrar Jorginho pelo Brasil.
Curiosamente, nessa mesma época, segundo o Fantástico, George fez amizade em um dos mais propícios locais para isso: um bingo em Niterói. Virou amigo de uma dona de casa chamada Adriana Damasceno que, sabe-se lá por qual motivo, deixou Délio-Anthony ter acesso às contas dela. Eles viajaram para os EUA juntos, e ela diz que nosso Jorginho rapelou todo seu dinheiro guardado, penhorou suas joias e desapareceu.
Só no ano passado, por causa da repercussão do caso nos EUA, a história de Niterói voltou à tona e a justiça decidiu fazer algum barulho. Nosso intrépido George fez um acordo com o Ministério Público do Rio de Janeiro, pagou 24 mil reais e ficou por isso mesmo. Pelo menos, enfim, o dinheirinho do vendedor Carlos voltou (com correção monetária, espero).
3. O duplo twist carpado nas contas da campanha
Mentir, omitir ou florear sobre a família e o currículo tem seu charme e causa um certo furor, sem dúvida, mas se só isso derrubasse congressista nos EUA, o lugar tinha virado um deserto ou uma Zona Autônoma Temporária. A questão é que depois dessa pororoca de histórias surgir, alguém pensou: “Se ele mente tanto assim com as palavras… imagina com os números?”. E aí foi que o barraco desabou. E desabou com força.
Quando o Comitê de Ética da Câmara dos EUA decidiu investigar nosso Jorginho, um fio ia puxando o outro, e outro, e outro, e cada linha de Excel destrinchada foi deixando todo mundo boquiaberto. Foram nove meses de investigação e, assim que o documento foi publicado, todo mundo sabia que ele seria cassado.
Eu não entendo muito de números, pra ser sincero, mas dois detalhes me pegaram nessa investigação financeira: o primeiro é que ele usou o “método Chaves vendendo churros” pra engrupir dinheiro. O segundo é a forma descarada e frívola que ele torrou o dinheiro engrupido.
O que o tal do comitê descobriu é que, em 2020, George Santos decidiu investir em sua própria campanha eleitoral. Ele emprestou, segundo os papéis, 81 mil dólares para seu próprio comitê. Quando a campanha acabou, ele pegou de volta uma parte considerável do valor. O problema é que ele, na verdade, depositou apenas 3.500 dólares, prestou contas como se fossem 81 mil e, no fim da brincadeira, lucrou 27 mil dólares.
Seria genial se não fosse tão burro.
E o dinheiro que financiadores republicanos doaram para a campanha? Aquela parte que ele não fez um cambalacho financeiro para ir pro próprio bolso diretamente? Bom, ele queimou jogando em cassinos, comprou um tênis (bem feio, na minha opinião) de 6 mil dólares da Ferragamo, gastou um outro trocado colocando botox e, se aproveitando da regra de não ter que declarar pagamentos abaixo de 200 dólares, também usou algumas moedinhas para apoiar e pagar produtores de conteúdo adulto no OnlyFans.
E aí não teve jeito: mesmo com apoio de muitos republicanos e até de vários democratas, a hora que o relatório foi publicado, todo mundo mudou de lado. George Santos virou um pária. Com 23 acusações nas costas, 311 deputados votaram a favor da cassação. Assim que o resultado foi anunciado, em sua última saída do Congresso, Jorginho se despediu como uma musa do cinema americano dos anos 50: “Que esse lugar vá para o inferno”.
E assim o sonho acabou.
Será?
A verdade é que é impossível dizer que os verdadeiros sonhos de George morreram nessa cassação. Pra ser sincero, eu acho que eles só ganharam mais chances de se realizar, e há possibilidades sinistras que passam pela minha mente – e imagino que pela dele também.
Mas para eu poder explicar o que eu entendo como a verdadeira jogada de mestre de George Santos e porque eu acredito que ele não vai sumir por muito tempo, precisaremos adentrar juntos, de mãos dadas e dedos entrelaçados, os sonhos de outra personagem: a drag queen Kitara Ravache.
É o que faremos na semana que vem, na próxima edição do Departamento de Artimanhas. E até lá, que você tenha bons sonhos…